Sem motivos para ser assinalado completa-se hoje mais um ano de minha existência como blog. O facto de não estar sendo alimentado pelas ideias Kokianas deixa-me à míngua, fraco, praticamente moribundo ou pelo menos hibernado e sem perspectiva da hora de acordar.
Caminha lentamente rua abaixo arrastando um saco parco de compras, os ombros vergados pelo peso da vida, os pés arrastando na calçada uns sapatos velhos de solas esquecidas dos caminhos caminhados.
Não é só velho na idade; é sobretudo velho por tanta vida vivida.
Do pai nada se sabe. Diz-se que morreu na guerra, numa das muitas que por aí aconteceram. A mãe, essa sabe-se que morreu numa chuvosa noite de inverno colhida pelo comboio que não queria perder para não chegar atrasada à casa onde a vizinha lhe cuidava do filho (deste filho). Cresceu só, na companhia de outras crianças sós, todas elas órfãs de pais ou de mães mas sobretudo de carinhos.
Nesta rua íngreme que percorre todos os dias, em ambos os sentidos, o velho perde-se nas suas memórias; lembra-se difusamente do último beijo que recebeu da mãe e também sem saber se comprou, na mercearia do fundo da rua, tudo o que precisa para o jantar: os dois ovos, o pão ou as fatias de fiambre para “comporem” a omelette?
Sabe que ficou só ainda criança; tem recordações difusas sobre os anos que o levaram até à adolescência e que se misturaram com outras de, quando já adulto e influenciado pela malandragem do bairro onde vivia, ter participado em esquemas onde assaltos e tráfego de drogas tiveram lugar.
"Lembra-se pouco de tudo e muito de nada, até do que não viu mas que lhe contaram, como no caso do“Nélio 9mm” que morreu numa rusga ao disparar contra a polícia; levou um balázio na mona, dois ou três no corpo e ainda um na peida (que lhe abriu um buraco ali mesmo ao lado do que tinha de nascença) da autoria do Biscas (um batoteiro reles no jogo de cartas) que tinha má pontaria e que de armas nada percebia".
Nunca esteve preso porque sempre foi insignificante, quase invisível, no meio dos malandros. Tanto assim que nem alcunha tinha; era somente o “é pá!”.
-é pá faz isto;
-é pá vai buscar aquilo;
-é pá controla a bófia;
-é pá pira-te...
-é pánão chateis!!
A custo vai chegando ao fim da rua, aproximando-se da casa onde um minúsculo quarto lhe proporciona abrigo e que, por já ter “morado nas ruas”, é como entrasse num palácio; pequeno mas ainda assim um palácio.
São muitas as memórias que vão surgindo “à tona” do mar de recordações que lhe povoam o cérebro. É de poucas falas ou talvez não fale por não ter com quem partilhar coisas que aos outros nada dizem. São imensas as vidas que viveu e que poderia contar mas pouquíssimos têm paciência para ouvir os velhos!