NOITE DE CHUVA
É noite escura! As nuvens descarregam chuva em grossas bátegas que ressoam nas vidraças. Já passou o Inverno e no entanto ele ainda mora lá fora (e às vezes também cá dentro). A sala vive uma penumbra acolhedora. Verto no cálice uma dose generosa de whisky de malte (Balvenie no caso) e
recosto-me no sofá segurando o livro aberto a meio do primeiro capítulo sem saber ainda bem quem são e como serão as personagens que dão vida ao enredo e, consequentemente, à existência dele (do livro). Concentro-me: há uma mulher jovem, um homem trintão com um filho adolescente, a mulher dele e mãe deste que fugiu com um motorista de taxi, o senhorio da jovem (que lhe quer cobrar a renda do T0 entre os lençois da cama dele (ou da dela, tanto lhe faz), o dono da peixaria dos congelados que mora no andar de cima (e que também prefere uma febra jovem em vez duma posta de pescada do chile), a vizinha do rés-do-chão (uma viúva ainda dentro do prazo de validade) de fartos peitos e largas ancas acentuadas pela cintura estreita, um taberneiro de esquina (local onde decorrem torneios de sueca e que não poucas vezes acabam à chapada), e um sapateiro, coxo, (ainda do tempo das "meias-solas"), actualmente vendedor de cautelas e de raspadinhas, que passa os dias encostado ao balcão da taberna bebendo copos de tinto e reclamando da vizinhança por calçarem ténis em vez de sapatos. E ainda o adolescente que não se cansa de espreitar a jovem que habita o T0. Da escada ressoam vozes dos vizinhos que chegam da noite, decerto bem comidos e melhor bebidos a avaliar pela gritaria. A Migas manifesta-se ladrando às vozes que soam. Desconcentro-me. Bebo um gole de malte. E outro mais para evitar deixar o cálice sujo. Já é tarde. Não muito porém sinto-me adormecido e, consciente de que o sofá não é hoje a melhor cama, levanto-me, fecho o livro e caminho para o quarto. Amanhã talvez comece ler o segundo capítulo.