O CAVALHEIRO
Há situações a que assistimos onde a vontade de rir toma conta do nosso bom senso fazendo com que gargalhadas espontâneas soem como se fossem agressões a quem nos rodeia, isto é, aos “culpados”, àqueles que “as provocaram”.
Lembro-me de um cavalheiro que caminhava pelo centro do passeio numa rua da baixa, de fato e gravata, colete de cor cinza, chapéu de “coco”, pasta de fina pele numa das mãos e na outra, elegantemente seguro e escrupulosamente dobrado, aquele jornal semanal de grande tiragem. De olhar firme e fixo num horizonte longínquo que ultrapassava o arco onde terminava a rua, ia caminhando com a firmeza que só uma mente forte, decidida e arguta pode proporcionar (acho eu…).
Percebia-se ser uma pessoa distinta, educada!
Desviava-se com elegância dos carros das castanhas quentes e boas, manifestando-se gestualmente enfadado e desagradado pelo respectivo fumo, que invadia o ambiente, rodeando-o.
Aos músicos que dedilhavam as cordas de uma viola já cansada ou sopravam em saxofones de idade avançada, e que encostados às paredes faziam soar arremedos de músicas mais ou menos conhecidas, tentando angariar alguns €uros para a (talvez única) refeição do dia, e aos pintores que expunham telas deitadas na calçada numa tentativa de interessar algum comprador que lhes proporcionasse o minimamente necessário para uma sopa e uma bifana, não detinha o olhar nem, possivelmente, o pensamento.
Imperturbável, seguia firmemente o seu caminho!
Mas as calçadas são perversas; e nem todas as respectivas pedras se acomodam da mesma maneira; umas “abaixam-se” em disfarçadas depressões e outras “alevantam-se” sem razão aparente.
Foi uma destas que lhe acabou com a compostura: segurou-lhe a biqueira do sapato e… fez com que se estatelasse ao comprido; o chapéu de “coco” rolou para longe, a pasta de fino cabedal esbarrou na porta de uma loja de bijutarias e abrindo-se espalhou 2 relatórios, 1 contracto de arrendamento, 2 maçãs golden e um iogurte de cereais; o jornal desdobrou-se em fascículos, prontamente aproveitados para acondicionar algumas dúzias de “quentes e boas”.
Com os sapatos italianos esfolados, as calças rasgadas na zona dos joelhos, o colete cinza de onde desertaram uns quantos botões e a gravata (de seda) congestionada, levantou-se furioso e perante o riso espontâneo, ruidoso e convulsivo da assistência que o rodeava, gritou:
-Vão todos p’ó…
Mas era tanto o barulho das gargalhadas e dos gritos de incentivo de quem ali estava (ouviram-se alguns “bis”, “bis”, brráávôô…) que não cheguei a perceber para onde ele quis que fossem todos os presentes!
O humor dos cavalheiros tem qualquer coisa de diferente…